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Pesquisadora do Perspectivas defende tese sobre os projetos de lei proibitivos da “linguagem neutra”

Bianca Vellasco realizou uma pesquisa etnográfica em meio digital

A tese “Pânico moral e higienismo verbal: a rede metadiscursiva sobre ‘linguagem neutra’ no Brasil”, defendida por Bianca Alencar Vellasco, em março de 2024, na Faculdade de Letras da UFG, através de banca híbrida, composta pelas professoras Joana Plaza Pinto (UFG), Cristine Gorski Severo (UFSC), Kátia Menezes de Sousa (UFG) e pelos professores Rodrigo Borba (UFRJ) e Hélvio Frank de Oliveira (UEG), nasce de um Projeto de pesquisa elaborado em 2021 e de uma etnografia digital iniciada em 2022. 

O compromisso com esse Projeto – voltado para a busca de um debate público atual envolvendo o cenário das políticas linguísticas no Brasil – combinado à abordagem etnográfica em ambiente digital, culminou no encontro com um tema que tem mobilizado um certo espaço – discursivo, digital e legislativo – com picos de interesses repentinos e sazonais nos últimos anos na discussão pública brasileira: uma espécie de contenda envolvendo o uso da chamada “linguagem neutra” (uma tentativa de representar na língua a existência de pessoas não-binárias, isto é, as pessoas que não se identificam nem com o gênero feminino e nem com o gênero masculino).

 

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Google Trends: buscas pelo termo “linguagem neutra” ao longo do tempo (2019-2024)

 

O resultado da exploração etnográfica empreendida está no mapeamento de quase 60 de projetos de lei - a nível federal, estadual e municipal – voltados para a proibição/vedação dessa forma de linguagem em escolas, editais e projetos culturais de natureza pública, encabeçados por parlamentares filiados a partidos de direita e centro-direita. Além desse movimento legislativo, referido na tese como “discussão proibitiva”, o material empírico também está composto por uma faceta “afirmativa”, na forma de manuais, manifestos e iniciativas favoráveis ao uso dessa linguagem.

 

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Parte do material empírico: mapeamento final dos Projetos de Lei (56), elaborado pela autora (2022) e exemplo de Guia para o uso da linguagem neutra elaborado por ativista não-binária (2014)

 

A partir deste material empírico, a tese se desenha em quatro capítulos, que contam como a “linguagem neutra” têm sido inventada (PENNYCOOK; MAKONI, 2007) no Brasil por um fio de entextualizações (BAUMAN; BRIGGS, 2005) que ocupa vários domínios textuais através de uma disputa desigual, em que um regime articulado e dotado de poder institucional (o grupo proibitivo) se apropria dela para ganhos políticos, encontrando uma resistência orgânica e aparentemente desarticulada (o grupo afirmativo), que não detém do mesmo tipo de poder institucional, mas que também é capaz de fazer algum tipo de pressão política. 

 

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Esquema visual que ilustra a rede textual articulada, elaborado pela autora (2023) e Flyer de uma das deputadas proponentes postado em rede social (2021)

 

Entre as conclusões da tese, está a percepção de que a tentativa de proibição da “linguagem neutra” funciona metonimicamente para banir, na verdade, quem não represente os ideais de família, sociedade e sexualidade normativa idealizada (aquele que cabe dentro da norma culta padrão e que tem no masculino genérico a metonímia da sociedade). O nível de circulação textual incessante que essa pesquisa tentou acompanhar, registrar e analisar também ocasiona um último insight conclusivo: a analogia do mito da Hidra de Lerna (uma espécie de monstro que “teria sete cabeças que se regeneravam em dobro quando cortadas”) com a capacidade “monstruosa” de multiplicação textual e incitação de conflitos que a discussão sobre “linguagem neutra” mobiliza.

A importância dessa temática aponta para a atualização do cenário das políticas linguísticas do Brasil, que reverbera a persistência de ideologias de linguagem ligadas ao século XIX, como a do monolinguismo (a insistência numa língua única para o fortalecimento e pertencimento a uma nação), a do higienismo (a preocupação com a limpeza, organização e homogeneidade da língua), e a da padronização (a crença de que apenas a gramática prescritiva está autorizada a dizer e legitimar o que é a língua). Além disso, esta pesquisa também dá indícios da necessidade de se adotar uma perspectiva menos ingênua diante da plataformização da discussão pública (CESARINO, 2022), visto que o ambiente digital favorece uma polarização política partidária, em que as informações e argumentações ocorrem de maneira tática, organizada, repetitiva, que se afasta da reflexão/problematização e se aproxima do combate e da lucratividade.